sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Poema Porto

Casco em reparação, óleo sobre tela
de Quinquela Martín (1958)
Flávio Viegas Amoreira

Sobrevivi ao naufrágio da paixão
encerrei todas viagens além-mar esperando no mesmo porto de partida
o amor é um barco não mais à deriva
agora tornei-me eu mesmo o cais

fugi ao fogo de minhas quimeras
não eram sonhos, eram tempestades sem murmúrio
que seja condenado mil vezes pela culpa que não carrego
mas nunca me julguem pelo arrependimento daquilo que deveria e não cometi por medo do desejo que hoje me aponta o dedo sem mais Amor que não vivido......

no verão quedei as velas
no verão estaquei as âncoras
no verão fiz-me  albatroz num penhasco tosco
agora tornei-me eu mesmo o cais e desterrado marinheiro

chegado o outono e quando soar o sino, não estiveres por perto
o templo ainda reverbera em ti o sentido daquele instante
não mais consolação /  ainda assim o silêncio compartido ecoa dum maio que também partia depois da magia duma noite sem retorno
não tens mais aquele maio / nem mais aquela precisa noite

volta-te ao mar da tua origem : a ele pede reflexos que retenham a lembrança: que as vagas contenham nas ondas o pó do teu destino
quando o inverno diz mais uma vez solidão
mais uma vez solidão no inverno : responde terno ,
tiveste num maio pausa ao tormento;
foste o homem com seu amado
das ruas em silêncio / do vinho ainda em teu hálito;
cálamo num casto leito
paixão em teu repouso

a Vida não é entendível
compreender no vácuo do absurdo
no gesto donde escreve amor sem mais amor para ser lido
não mais carta que te chegam , mas outrora a linha do horizonte promete Aurora
foste apartado do meu tempo / mas desde o copo a boa nenhum amargor rescende a ranço
poeto, esvoaço
é a manhã que me sopra e preenche o lastro
a fala dos anjos que crêem nas páginas ainda em branco
vai! por quem quiseres e aceita que a folha siga

como o acaso que arde ainda em brasa
torna-te ode / elegia
eras um corpo, Amor
agora erra como poema na estante
só amanhece no rosto que move a escrita
longe é onde a ausência é menos que o desespero
impossível é o estado da desistência precipitado pelo medo

Poesia é a razão sobrevoando de asas soltas o Eterno
é amor de caso pensado;
se amas, mergulha, nada deve ser deixado pela metade
nem o naufrágio se tanto queiras...
hoje estou livre da paixão do teu corpo
embarcou um Oceano em mim...

sábado, 20 de outubro de 2012

Gilberto Mendes, o gigante desconhecido


Flávio Viegas Amoreira

Gilberto Mendes no palco do Teatro Guarany em 12/10, durante
homenagem promovida pelo grupo Quatro Quartos,
que interpretou obras
 do compositor
Hermético, ininteligível, experimental- elitista: quantos adjetivos aqueles que conhecem "santisticamente" Gilberto Mendes atribuíram a um dos mais importantes compositores e agitadores musicais latino-americanos! Atonalismo, dodecafonia, musica concreta, peças performáticas!, admirável carinho que conterrâneos de mar do maestro prestam mesmo desconhecendo ou torcendo o nariz para sua mundialmente reconhecida obra.

Gilberto Mendes ao lado de Vicente de Carvalho e Plínio Marcos forma o trio de ouro dos mais influentes artistas nascidos nesse mítico cais de Santos e, agora nonagenário, sei por que sua maior satisfação seria ter seus CDs ouvidos por uma nova geração mais atenta e ter de volta ao litoral o mais antigo Festival de Vanguarda do Brasil: o Musica Nova. Gilberto comunista, de coragem estética pungente e contestação à  caretice burguesa não combina com babaquice elogiosa de quem carece de argumentação por ignorância de seu legado inquietante. O que caracteriza o criador  de Santos Football Music, Beba Coca-Cola e Último Tango em Vila Parisi é essa quebra de paradigmas: é um amigo de rara generosidade e afável na superfície, mas implacável com o pensamento médio e a estupidez reinante.

Cresci espreitando Gilberto através de suas galáxias sinestésicas: compondo ao lado dos poetas concretistas, a partir de poemas de Drummond e Hilda Hilst sem supor que um dia seria seu parceiro em tantas canções para coral e  "atmosferas sinfônicas". Imaginar que substituiria Cecília Meireles em Cavalo Azul ou teria inserido meu Chuva no Mar em Alegres Trópicos interpretado pela Osesp! são prova de ousadia ao empenhar confiança num escritor iconoclasta e sua paciência com o aviltamento cultural de nossos tempos de macdonaldização de cérebros. Enfatizo ser comédia de erros tratar como astro pop uma catedral profunda de oceânico cromatismo e sonoridades quântico-cósmicas: seu Rimsky é para ser ouvido para quem no mínimo conhece Frank Zappa, sem falar em Pierre Boulez.

Gilberto Mendes é um raro lobo da estepe só para os loucos com excesso de sensibilidade. "Escrevo porque esta atividade me proporciona um grande prazer estético. Se o meu trabalho agrada a uma minoria, sinto-me gratificado. Se isso não acontece, não sofro. Quanto à multidão, não desejo ser um romancista popular. Seria fácil demais". Esse aforismo de Wilde diz tudo: os que estimam o compositor por carinho não são exatamente aqueles poucos que conhecem seu ideal de música. Parece fácil fazer o que ele compôs, mas é abissal a capacidade de entender seus propósitos melódicos e interações de significados.